ESCOVAÇÃO MATINAL E MEDO

Fortíssimo candidato ao maior emblema de minha geração, já que há cerca de um decênio qualquer sujeito é testemunha de sua façanha epidêmica - muito afim de ancas, dorsos, nucas e culotes - é a tatuagem carpe diem, micose de estatuto popular.

É com a maior tranquilidade que afirmo não se tratar da ressurgência do movimento árcade, por constatação simples. Sinto-me livre para também ignorar qual seja o sentido original do termo (pois essa é apenas uma manobra para conectar-me a outro tema), e considero exclusivamente a vertente moderna que se compreende no seguinte sinônimo, de lógica a=b, tal que: a="aproveitar o dia é aproveitar a vida!", b="viva o momento como se fosse o seu último!". Após evitar qualquer rememoração das propagandas da Colgate, devemos admitir que a proposta é vigorosa, pois força a noção de limite máximo (aproximação da sensação da morte) como medida de pressão pela torrente imediata da libido, ou seja, ampliar o ímpeto pelo meu bolinho primavera, sentir todo o sabor numa só mordida de prazer, porque o prazo de validade é pra meia-noite.
Mas eu não posso aproveitar o momento como se fosse o último, e não o posso por dois fatores. Não há força suficientemente capaz de convencer-me de que estou para acabar - a sensação de continuidade é um recurso inalienável da saúde do sistema psicofisiológico - e, principalmente, a morte, ela mesma, nunca esteve excluída desse processo integral da psique. Quero dizer com isso que não é a morte a causadora da sensação de limite, nem tem ela com a "anti-vida". Não sente-se diretamente a morte, sente-se é o medo dela.

Recentemente entrei em contato com este trecho, que me sorri agora:
Uma consciência não é por si mesma fragmentada. Ela sente de modo não fragmentado; um acordar diário dela é sensivelmente uma unidade. (...) a sensação do trovão é também a sensação do silêncio agora mesmo acabado; e seria difícil encontrar, na consciência concreta do homem, uma sensação tão limitada ao presente. William James

Vivemos não um determinado momento, um lampejo de percepção descontextualizada, mas a experiência presente da consciência é uma fluidez de ligação entre fenômenos que ocorreram e que estão próximos de ocorrer, participam de uma unidade. Em outras palavras, o eu é um complexo contínuo, e nem o maior dos fanfarrões poderia despojar-se do seu senso de correnteza e forçar uma sensação de interrupção de si. O homem não só acredita no amanhã como sente o amanhã.

(...) nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como ele se dá, já que nós somos este laço de relações. Merleau-Ponty

Durante o sono, atravessamos diferentes fases de metabolismo cerebral e tombamos efetivamente, nos períodos de improdutividade onírica, na parcial ou completa inatividade da consciência (estágios de sono NREM, notadamente o 4º) – ou seja, uma morte. Não atinamos com esse intervalo de inexistência ao acordar, mas reativamos automaticamente a perpetuidade do familiar “eu mesmo”. Entregamo-nos à morte crua, diariamente, e confiamos infinitamente no sistema psicofisiológico pela ressurreição matinal. Jamais nos questionamos seriamente se acaso voltaremos a acordar, tampouco nos ressentimos de morrer antes de dormir. Enfrentamos a morte como parte natural e integrante do fluxo da vida - ela não está expurgada da nossa experiência e realização do self. No sono, é justamente por não existir o medo da morte que não lidamos psicologicamente com um fim: o fim é experiência do medo.


Mas, só poderia falar sobre o medo aquele que fosse capaz de ter com essa imagem sem temores - e este alguém não sou eu.

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