DIÁLOGO COM O MEU FACÍNORA

Sou simpatizante da idéia de que certas coisas merecem nada além do desprezo. Contudo, sou primeiramente um idealista (massacrado pela realidade, fato) e, como tal, defendo muito mais a liberdade individual a qualquer outra coisa, o que me impede de aceitar a censura. Para livrar-me desse conflito de opostos, descobri desde cedo o componente de cauterização das duas vontades, aparentemente inconciliáveis: a censura individual, o boicote. Nada como o prazer de afastar longamente certas farpas de minha vida. Por exemplo, não vejo filmes nos quais conste a arte de Julia Roberts ou de Deni Devito. Boicoto também os açais de 10 reais de São Paulo de tal maneira que, a depender do meu apetite, esses administradores paulistanos teriam com a imediata falência. De fato, considero o boicote a mais importante ferramenta de transformação da sociedade, como acabo de demonstrar.

Há muitos anos, sigo à risca um compromisso firmado com minha própria dignidade: proíbo-me de deixar passar pela televisão sequer a sombra do maior emblema da fragilidade do caráter humano que conheço, o Fausto Silva. É simples: para mim, esse sujeito não existe. Acabo de lembrar-me de um planejamento ambiental de minha infância, de que para livrar o mundo do excesso de produção de lixo e poluentes, deveríamos expeli-los regularmente para o espaço sideral - deixando o infinito abraçá-los. Fausto Silva anda a orbitar Plutão.

Entretanto, o boicote dos conteúdos psicológicos é altamente desaconselhável. O indesejável interno não pode ser simplesmente expelido, a menos que você cultive abertamente as neuroses, como quem rega ervas daninhas. Se o Fausto Silva externo não existe, o Fausto Silva interno é o meu Mefistófeles. Fausto Silva interno simboliza toda a minha decadência pessoal. Segundo Jung, não é difícil o indivíduo reconhecer o ângulo relativamente mau de sua natureza, isto é, deparar-se com a sombra pessoal ou coletiva, mas deparar-se com o absolutamente ruim, ou seja, com o Fausto Silva, representa uma vivência ao mesmo tempo rara e assombrosa. O mau é uma realidade e não é possível desvencilhar-se dele por meio de eufemismo ou recalque, por isso é necessária a convivência. Assim, ocupei-me de paciência e coragem para convocar um debate interno, como uma primeira medida conciliatória. Foram convidados: o meu diabo (Fausto Silva), uma excelentíssima banca acadêmica para deliberar sobre os acontecimentos e, naturalmente, o meu vacilante eu. Como mediador, evoquei Cedric Zavala (vocalista da banda The Mars Volta), não sei bem o porquê.

Eis o ocorrido, sem tirar nem pôr:

Cedric: Is anybody there?
Elton: Parece que sim, parece que estamos estáveis com a projeção das imagens.
Faustão: Ô loco, meu!
Elton: Sim, sem dúvidas. Mas, primeiramente, muito boa noite.
Elton: Modere o sorriso Fausto, o problema, Cedric, senhores da banca, é que esse homem faz do espaço público a sua própria latrina. Ele já tem o sucesso, por favor, não há motivos para continuar com essa distribuição baixa na televisão brasileira.

[parecer acadêmico sobre a reversão psicológica: é o próprio Elton quem preenche seu espaço privado com a mais variada imundice, é o próprio a não aceitar o contentamento que lhe é cedido pela vida ou a disposição eternamente ambivalente do espírito humano, e não quer admitir]

Faustão: Que isso bicho! Sou um exemplo, tanto no pessoal quanto no profissional, de um homem preocupado com o desenvolvimento do potencial brasileiro, e por que não, do ser humano.
Elton: Gostaria de manter-nos fora do plano das ofensas, mas o senhor é um hipócrita dos grandes!

[parecer acadêmico sobre a reversão psicológica: é o próprio Elton quem é o hipócrita, dos grandes, e não quer admitir]

Faustão: É brincadera eim bicho! Num oferecimento das sandálias Ipanema.
Elton: você está a um passo de inverter a ordem das coisas, a justificar a mediocridade das suas atrações por meio deste escudo inescrupuloso, desta bacia sem dono que virou a palavra "entretenimento", ou pela baixa demanda cultural do telespectador brasileiro, como se fossem estes os culpados. Não se justifica a falta de discernimento de um pela falta de discernimento do outro.

[parecer acadêmico sobre a reversão psicológica: é o próprio Elton quem tem o poder de controlar seus níveis morais e éticos, mas que não o faz de todo modo, com uso de esquivas e premissas falsas, e não quer admitir]

Nesse instante, Fausto Silva transformou-se num unicórnio vermelho e dourado, olhos vivos de iogurte, e dirigiu-se para o rio Paraíba do Sul cantarolando antigas canções do ciclo do ouro, no século XVII. As pessoas da banca revelaram-se nada mais que copos d'água, mas preenchidos com Taff Man-E

Elton: Cedric, faça algo, o meu diabo não me leva a sério!

Cedric rodopia como um Michael Jackson latino, desperta uma labareda de fogo em seu microfone e vocifera, no mais agressivo merengue que já se tenha visto: Is anybody there?

Levando-me ao delírio.

ENCONTROS FORÇADOS, parte I

[Crime e Castigo, cap VII, pg 92. Apartamento de Aliena Ivánovna, Raskólnikov acaba de matar a velha e incia o roubo] Ele botou o machado no chão, ao lado da morta, e no mesmo instante atirou-se ao bolso dela, procurando não se sujar do sangue que escorria. [...] "Meu Deus! Preciso fugir, fugir!" - balbuciou e lançou-se para a ante-sala. Mas ali o aguardava um horror como, é claro, nunca havia experimentado.

[entra em cena Ferdinand Bardamu de Viagem ao Fim da Noite, pg 118]
— Estou te reconhecendo direitinho, que é que aconteceu com a velha? Você já vinha crente que ia tirar a barriga da miséria, hein, seu cafajeste? Quem sabe também achava que ia enrrabar a madrinha?

[Grande Sertão: Veredas, pg 532. Riobaldo aparece por detrás da cortina, reflexivo] 
Aquela mulher sabia dureza; riscava. Ela discordava de todo destino. Assim estava com um vestido preto, surrado muito desbotado; caiu o pano preto, que tinha enlaçado na cabeça, e ela não se importou em ficar descabelada. E a boca marcava velhos sofrimentos? Para mim, ela nunca teve nome. Não me disse palavra nenhuma, e eu não disse a ela. Tive receio de vir a gostar dela como fêmea. Muito melhor que ela não carecesse de vir - que se tem que carregar cobras na sacola, sem concessão de se matar... [Riobaldo observa Raskólnikov petrificado e delibera, na pg 544] Aquele homem, mesmo com a valia e bizarria dele, eu pudesse querer mais no meu bando? [e solta a voz, finalmente, pg 566] "Tu, menino, tu vem adiante, mano-velho: emparelhado comigo... Tu me dá sorte!". 

[Crime e Castigo, pg 95]
"O que eles estarão?..." Esperou com paciência. Num instante tudo ficou em silêncio, cessou bruscamente: dispersaram-se.

[Viagem ao Fim da Noite, pg 118]
Fomos embora nós três juntos para os lados de Grenelle. Contamos nosso dinheiro, o de nós três, não dava muita coisa, e depois talvez ainda sobrassem alguns trocadinhos, mas não suficientes para uma trepadinha na zona. Mas mesmo assim fomos ao puteiro, só para tomar um trago.

DROGA PARA COELHOS

Prova de que não sou moralista é que passei a escutar drogas. Não digo da violência sonora a qual tenho sido submetido sistematicamente na academia de musculação (há um preço caro para tonificar o chester), ou do pernicioso momento que antecede a luminescência das telas de cinema do Cinemark, quando me descubro envolto a uma atmosfera "bossa-lounge" da rádio da casa - e nesse instante a minha brasilidade, constrangida, pede proteção. Refiro-me ao I-Doser, emulador sonoro de drogas. Tentar se entorpecer mediante ruídos intermináveis e sem corroer o metabolismo não é um método particularmente subversivo, mas há certo coeficiente de malandragem em investigar drogas antes de dormir.

É perda de tempo ouvir «ópio» no software, assim como é perda de tempo o LSD, o anestésico, a cocaína, o crack, a heroína, a maconha, a morfina e o peyote. Mantive o meu embalo distante do fascinante «viagra», temi os seus efeitos na solidão. Aceite o produto dessa pesquisa e vá direto ao que há de melhor, o chamado «HandOfGod» - ele contagia com suas frequências ondulantes, um pipipi agudo e um zumzumzum imponente passeiam em ciclos comoventes. Deite-se, certifique-se da mais rigorosa escuridão em seu quarto, faça uso do seu headfone de 300 reais e surpreenda-se: como seria passar uma temporada no útero de um aspirador de pó avariado ou de um liquidificador ARNO dos anos 80. Há um momento especialmente crítico – a apoteose – em que é perfeitamente plausível de se esperar por uma explosão craniana, mas tudo não passa de uma cilada para Roger Rabbit.

A versão do I-DOSER disponível para download no site oficial é de descontentar, só oferece o aperitivo «álcool» – absolutamente frustrante para quem busca algo barra pesada, como sentir-se numa turbininha de ventilador. Tive de pedir favores a pessoas que há muito se despojaram de qualquer rigor ético, pertencentes ao submundo dos traficantes virtuais, para só então me abastecer de toda a lista psicotrópica, já mencionada. Como era de se esperar, os relatos dos sujeitos entorpecidos só poderiam ter com a verossimilhança se levássemos a sério a afetação daquele sujeito que fumou orégano pensando ser maconha. Contudo, ocorre que há certo benefício para práticas de relaxamento ou de meditação, o estranhamento causado pelos ruídos auxiliam em exercícios de imaginação ativa e em mudanças de estados de consciência - que diferem dos efeitos das tais drogas pretendidas (imagino, finalmente vale defender a minha sobriedade). Caso contrário, as vendas de I-Pod sairiam do sucesso para alcançar o Éden, e a Osesp ganharia o gosto da juventude ao tocar «ecstasy - allegro vivace». 

ENANTIODROMIAS

Clarabóia é uma palavra feia. Faz imaginar uma mulher albina boiando no mar; uma caminhonete de bóias-frias suados num dia luminoso. Mesmo assim, quer significar algo bastante agradável: uma abertura no teto pela qual se pode observar o céu e o humor dos tempos sem evitar a preguiça (em vez de abrir a porta, a janela ou entrar no site do INPE e supor o exato inverso do que esses senhores afirmam).
Psicopompo é uma palavra feia. Faz imaginar uma psique pomposa; vaginas mentais pompoando, pompoando; cheerleaders psicóticas. Mesmo assim, quer significar algo bastante agradável: uma figura espiritual que faz a vez de guia das almas do reino dos homens para o reino dos deuses, um arquétipo que orienta a jornada da consciência na apreensão do universo inconsciente, como Hermes, um Puer Aeternus, um Ramana Maharishi, um psicanalista (piada), etc.
Enantiodromia é uma palavra ainda mais feia. Faz imaginar um câncer raro nalguma carne ou glândula quase desconhecida; o "dromia" provoca tremor em toda a palavra, é de dar medo. Mesmo assim, quer conceituar algo agradável: equivale ao princípio de estabilidade no mundo natural, onde qualquer intensidade vem a ser compensada por seu extremo oposto, produzindo equilíbrio. Não há só a razão, não há só o dia, não há só o talento; Faz-se o irracional, a noite e o Hans Donner.

Se a enantiodromia não é gerada naturalmente, ou se ela não é aparente ao nosso senso de oposição, procuramos com avidez um efeito de compensação semelhante, por amor à justiça. Prosegue que, se uma mulher foi premiada com gravíssima beleza, deduz-se imediatamente ser incapaz de ler A Montanha Mágica de Thomas Mann (a tese é velha e absurda, absurda).
Um psicopompo não passa de uma clarabóia. Ambos promovem o intercâmbio entre duas realidades, são sinônimos no plano das idéias. "Psicopompo" e "clarabóia" são também enantiodromias lexicais (assim como a própria palavra "enantiodromia"): são horríveis de se falar, mas falam bonito.


ESTADO DE ÁRVORE

Numa praça em diagonal, a total falta de planejamento permite que a merda do seu cachorro possa ficar ao encargo da vida - nada de sacolinhas - por ali ninguém passa e certas coisas só o tempo desenfeza. É o lugar e a vez do desperdício mental.